O Luto
Antecipatório

by 30 Ago 2023Luto

O luto antecipatório é uma espécie de ensaio geral antes da estreia. É um luto que se inicia antes da morte, quando a morte já é aguardada pela família e amigos da pessoa que está em processo de morrer.

É comum em situações de doença prolongada, mas também pode iniciar-se em períodos de internamento mais breves na decorrência, por exemplo, de acidentes graves onde a pessoa fica num estado de saúde muito fragilizado ou de quadros clínicos não reversíveis com um progresso galopante ou em situações de demência, onde a pessoa está e não está em simultâneo.

Ao longo dessas semanas, meses ou anos cada membro da família e cada amigo vai perdendo camadas da sua pessoa amada e do mundo tal como o conheciam e partilhavam. Cada membro da família e cada amigo inicia assim as suas particulares despedidas, antecipando o mundo sem a presença física da pessoa que lhe morre. As rotinas mudam, a pessoa que lhe morre muda junto. Ainda estão juntos, todavia, muito já não é como antes. Há um final suspenso que se adensa.

O luto antecipatório é uma oportunidade de se organizarem ou de se desorganizarem. Se aproveitarem o ensaio geral, têm a oportunidade de não deixar nada por dizer, de perguntar como a pessoa gostaria que fossem tratados os seus pertences, o seu funeral, de chorarem e reflectirem em conjunto, de falarem sobre os tempos que virão, sobre os medos e as aprendizagens e a filosofia que a finitude traz consigo. Se aproveitarem o ensaio geral, conseguirão acompanhar a pessoa que lhes morre no também seu processo de luto e os restantes a quem ela também vai morrendo.

Se não o aproveitarem, ao cederem à conspiração do silêncio, ficam muitas coisas por dizer, sentir e esclarecer. O processo de luto tem mais probabilidades de adoecimento. E é, com certeza, mais solitário. É difícil ser uma barragem segurando todas as emoções. É-se uma prisão em si mesmo.

O luto antecipatório traz consigo muitas emoções, manifesta-se no corpo, na interacção com os outros, com o que os rodeia e consigo, na forma como vivem a espiritualidade e como o cérebro processa as informações. Notarão desde o início que estão diferentes. Se derem espaço a essa diferença, e à estranheza que a acompanha, se a aceitarem e tiverem a curiosidade e amorosidade para a escutar permitindo-se uma aproximação e uma adaptação gradual a esse vazio mundo novo, torna-se menos assustador gerir o momento da despedida final. Existe mais paz “partiu em paz”, “ficámos em paz”, mais “pratos limpos”, mais “cumprimos o seu desejo de…”, mais “eu disse que a amava”, mais “ela disse-me que”, mais “pedi desculpa por”.

É necessária coragem e permissão para a vulnerabilidade, sim. Mas também uma colher de gratidão pela possibilidade de escreverem juntos o último capítulo da história que compartilham. Fica a reflexão.

Psicóloga e hipnoterapeuta clínica e de saúde, especializada em processos de perda e luto, perinatalidade e parentalidade positiva. Ajuda miúdos, graúdos e famílias a conjugar sem lutas o verbo morreste-me, a restaurar o vínculo com quem já não está, a aguarelar a dor e a serem os guardiões da memória de quem lhes morreu.⁣⁣⁣

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