E quando alguém morre à criança?
Comecemos pelo básico: os sapatos. Calçar os sapatos da criança.
Cenário 1:
Imagine que lhe escondem que uma das pessoas de quem gosta morreu porque acreditam que não o vai perceber. Crêem que, quanto muito, irá notar a ausência por breves instantes e depois esquecer. Claro que ao estranhar a ausência fará perguntas, essas perguntas lhe são respondidas com uma estória que não tem pés nem cabeça, não condizem com a pessoa que conhece. É natural que tenha um pressentimento que alguma coisa má aconteceu porque todos estão diferentes. Mas uma vez que, não lhe contam nada começa a pensar que talvez a pessoa desaparecida esteja aborrecida consigo, afinal, é a única pessoa que são sabe dela. O que lhe estarão a esconder? Será que a pessoa já não gosta de si, que cortou relações? Fica triste, sente-se rejeitada, abandonada, culpada, com medo de desiludir também as outras pessoas e as perder também. Sente-se com medo e muito só. Não esquece. E um dia descobre a verdade…
Cenário 2:
Imagine que lhe contam que uma das pessoas que ama morreu, mas nunca ouviu essa palavra antes. Quer perceber o que é morrer, mas não lhe respondem às perguntas que tem, impedindo-a de a compreender. Sente saudades, há qualquer coisa que rasgou no seu peito. Entende a ausência, mas parece ser a única. Ninguém fala dela. Quando tenta puxar o assunto sobre quem já não está, mudam de assunto. Não se fala e não se chora, são as regras. Também lhe negam a possibilidade de estar próxima de tudo o que a lembra da pessoa que lhe morreu. Esperam que brinque, estude e siga como se nada fosse, mas dentro de si está tudo preso – pesa. Sente tantas coisas, está devastada, confusa. Só. Às vezes, não consegue segurar tudo e derrama alguma emoção para fora e é castigada pela “birra”. Dizem-lhe que precisa portar-se bem para não entristecer os adultos, estudar e ter boas notas…
Cenário 3:
Imagine que uma das pessoas que ama morre e outra pessoa da sua confiança lhe dá a notícia e lhe responde a todas as perguntas que tem naquele momento sobre a morte e o luto, mas também se mostra disponível para o continuar a fazer nos momentos seguintes e ao longo de toda a sua vida. Imagine que essa pessoa de confiança e outras que lhe querem bem acolhem a sua experiência de luto, permitem que escolha se quer ou não participar nos rituais fúnebres, e ajudam-na a legendar o que está a vivenciar sem rotular essa vivência de certa ou errada. Imagine que essas pessoas a ajudam a preservar as memórias felizes e lhe contam estórias que não conhecia sobre quem lhe morreu, que choram junto consigo, que não duvidam da sua capacidade de enlutar.
Em qual cenário se sentiria reconhecida, respeitada e amparada no seu processo de luto? Parece óbvio, mas a maioria das crianças por medo ou ignorância dos adultos experienciará um dos dois primeiros cenários. A taxa de adoecimento no luto infantil é, por isso, alta.
A criança tem o direito de enlutar, de saber quem lhe morreu e como lhe morreu. Mas falta verdade na comunicação com a criança enlutada. Enquanto não reconhecermos o luto infantil com um luto tão válido quanto o do adulto, não conseguiremos prepara-nos para o acolher. Fica a reflexão.
Nota: Numa situação de luto, é recomendável que os tutores da(s) criança(s) marquem uma sessão de orientação no luto infantil.