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Aceitar a morte dos seus não é sobre concordar com essa perda, sequer ficar em paz com ela. Não é certamente resignar-se perante o infortúnio dessa partida, muito menos conformar-se com a ausência. Aceitar a morte não é submissão a um deus e jamais será uma retirada insensível do vínculo que mantinham.

Aceitar a morte dos seus não é sobre esquecer as horas, os dias, as semanas, os meses ou os anos vividos em conjunto, nem fazer as pazes com os dias fatídicos em que os perdeu. Aceitar a morte de quem lhe morreu é, sendo rigorosa,  sobre o dia seguinte. Aceitar o dia seguinte – a realidade, o mundo, a vida – depois da morte dos seus.

Aceitar é compreender que as coisas são o que são, nem sempre o que gostaríamos que fossem. Aceitar é encaixar os factos dentro da cabeça e do coração, acomodar o que aconteceu e acomodar como fica o mundo depois do que aconteceu. Antes colocava a mesa para quatro, agora coloca para três. Antes na viagem do trabalho para casa ligava para a sua pessoa, agora não liga, não está do outro lado quem costumava atender.

Parece lógico. Duro, porém, lógico. Mas no ápice da dor, tendemos à negação. Fantasiamos o outro. Mantemos os espaços como se fossem ainda habitados, brincamos de até já e de faz de conta. Rejeitamos os factos, escondêmo-los nos confins de nós.  Ficamos à mercê desse fingimento. Passivos, sequestrados por um mecanismo de defesa duvidoso. Isolamo-nos. Reprovamos quem nos entrega a realidade, recusamos estar perto do que nos revela a verdade. É que aceitar dói. Fingir que a morte não existiu, cansa. Cansa ao ponto de disfarçar a dor. Mas, sejamos honestos: dói. Dói do mesmo jeito: não tem como não doer. 

É uma cegueira difícil de manter essa de negar a perda, de ocultar os acontecimentos que sublinham todos os dias o vazio de quem perdeu. É precisa muita dedicação para disfarçar o visto, para dissimular o sentido, para enganar o ouvido. É necessária muita devoção para manipular as situações a serem o que gostaríamos que fossem. Ou talvez seja só muito medo de não dar conta. Persistir na negação, consome-lhe opções, drena-lhe energia, aspira-lhe a sua espiritualidade: suga-lhe vida. Negar a morte dos seus é celebrar o florescer dos amores-perfeitos pela manhã e vê-los murchar a cada fim de dia: breve miragem.

Aceitar dói porque implica confrontarmo-nos com a realidade: uma realidade difícil de digerir. Mas aceitar é também um ponto de partida. Uma oportunidade de acção sobre o que lhe aconteceu. Isto aconteceu-me, e agora? Aceitar permite transformação sobre o que pode ser transformável.

Aceitar significa não estar em luta com a realidade da morte, com quem é agora e com os dias seguintes que vierem. Aceitar é saber que terá de se experimentar e reaprender a viver num mundo que não desejou, sem ressentimentos. Aceitar é semear possibilidades, esperança, em vez de mágoas. Aceitar é saber que o que temos, de verdade verdadinha, é o agora. Não dá para viver de passado ou futuro. As coisas palpáveis são o que são, as coisas palpáveis existem no aqui. 

Aceitar a morte dos nossos é, no fundo, uma permissão para viver o dia seguinte à morte e o dia que queiramos que lhe suceda. Viver o agora requer aceitar o que agora é, antes de actuarmos sobre o agora é para que se metamorfoseie no que ambicionamos que seja. Afinal, não dá para ser morto estando vivo e não dá para desmorrer, então, sinto muito, ser portadora desta notícia, mas: só nos resta viver. Bem viver ou mal viver: um luto sem lutas ou um luto em luta. Alimentar a negação ou trabalhar a aceitação? Você escolhe.