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Somos os dois. Os nossos filhos já voaram do ninho faz anos. Sou eu e tu agora e o agora dura há já muito tempo. Entretemo-nos com o trabalho por alguns anos, mas agora somos mesmo só os dois. Os filhos e os netos visitam-nos de quando a quando. Telefonam com mais frequência com que nos visitam, bem sabes. De resto, somos eu e tu.Temos a sorte de ter bons vizinhos, mas em dias de chuva ou de muito sol, ficamos mais em casa. De há uns tempos para cá, ainda sou eu e tu, mas sou só mais eu. Começaste a emperrar, a esquecer, a adoecer e agora sou eu que te cuido. Melhor ou pior, fazemo-nos companhia há muitas décadas. Se me morres, não sei de mim, dos meus dias.Sinto cansaço, às vezes queria uma folga de te cuidar. Mas quem te ia cuidar? E o que seria também dos meus dias sem te cuidar? Virou rotina isto. Prefiro o cansaço. Vou sentir falta deste cansaço, tenho a certeza. Sabes, meu amor, às vezes, imagino que me morres e sinto uma aflição tremenda. Lembro-me dos filhos da nossa amiga Ana que a levaram depois do funeral embora para casa de um, e depois andou para ali a rodar as casas de cada filho, até a devolverem à sua. Lembras-te? Ela telefonava-nos às escondidas e dizia-nos que só queria estar sozinha na sua casa, estar em silêncio, estar junto das coisas do Zé. Doía-me tanto não poder fazer nada. A ti também, estivemos sempre sintonizados na vida. Lembras-te como combinamos com ela ir lá pela calada da noite e raptá-la? O que rimos nesse dia. Não fomos. Em vez disso pusemo-nos os dois no carro e fomos só comer um gelado com ela à praia. Ficámos os três ali em silêncio, num inverno frio, a comer o gelado de olhos marejados. Adorei a música, disse-nos ela no final. Achei graça na altura, mas agora cada vez que lembro, acho que foi mesmo sentido. A música do silêncio é bonita de escutar, sobretudo nestas horas. Calço os sapatos dela, imagino-me de luto em casa dos nossos filhos com os nossos netos a falar alto e a correr para trás e para a frente, são crianças adoráveis, mas o barulho, só de imaginar, parece um pesadelo. É de certo um pesadelo! Eu lembro-me quando perdi o meu pai, nem o rádio eu ligava, fazia-me uma confusão! Ainda assim, não é a pior das minhas fantasias. Ai, agora vi-te bem a levantar-me a sobrancelha, intrigado, é verdade, meu amor, dou por mim a pensar nisto, talvez mais do que te disse. É que estás cada vez mais frágil, eu sei que também o notas, fazes-me lembrar um passarinho. Acho que estes são os nossos últimos tempos juntos, então, olha, dou por mim a matutar nisto de um dia me morreres. Muitas vezes. Muitas, muitas vezes. Já me conheces, sabes que eu penso muito e não gosto cá quando a vida nos toma de assalto. Prevenidos, vivemos melhor. Felizmente, não terei muitas decisões a tomar quando acontecer, o número da agência funerária está no caderno, a roupa e a fotografia estão decididas, a campa será a de família. Parecendo que não, alivia. O que me preocupa são os nossos filhos. Eu juro que se eles fazem como os filhos do Augusto que lhe vão lá casa no dia seguinte e levam-me todas as memórias tuas como lhe levaram as da Helena, eu juro-me, escuta, eu juro-te que armo um pé de vento. Imagina-me a viver numa casa esvaziada de ti! Digo isto e tenho medo de não conseguir dizer nada, pior, de me colocarem num lar ou trazerem alguém cá para casa para cuidar de mim. É que era só o que me faltava! Penso nisto e enervo-me, mas depois, sem ti, terei forças para o dizer, para barafustar? Eu sei que isto se faz com boas intenções, mas só desajuda. Perguntar não tem preço. Parece que depois de velhos, não temos mais palavra. E nós os dois sempre gostámos de mandar nas nossas vidas, bem sabes. Eu torço para que os nossos filhos nos conheçam e o lembrem. Torço mesmo porque quem serei eu nessa altura? Sem ti? Às vezes, também penso que se tu me morres, eu morro pouco depois. É raro, mas acontece muito. Dizem que a viuvez coloca a saúde em risco. Não sei, mas a Anabela e o Mário eram inseparáveis e realmente, em quatro meses, morreram os dois. A Cristina ficou com alzheimer depois do João lhe morrer e o Raul está deprimido desde que a Odete morreu, dorme até tarde, vai ao café, bebe demais. Que deus proteja a minha cabeça! O meu coração esse, não tenho fé, vai ficar em frangalhos. Não pode ser de outra maneira: és a coisa mais preciosa da minha vida. O coração e a alma, a fé e o propósito, esses acho que abalam para longe. Mas se eu tiver cabeça ainda os procuro. O Quim voltou a namorar, a Sandra também. Estão felizes, os filhos dela não gostaram muito, mas azar o deles. Eu não vou conseguir amar mais ninguém. Vou ter de aprender a dormir numa cama vazia.Gosto de imaginar que nalgum momento vou aprender este novo viver, como fizeram alguns dos nossos amigos. Imagino-me a participar daquelas excursões que a Celeste organiza, a inscrever-me na universidade sénior como a Ana, a ir ao ioga com a Beatriz ou a fazer caminhadas como o Rui. Imagino, mas não sei se terei forças. Olha, pronto, já estou para aqui de olhos chorosos. Apertas-me a mão. Eu sei, meu amor, queres que eu reaprenda a ser feliz.
 
Olha, uma coisa boa é que temos amigos, sei que me vou sentir muito sozinha sem ti, mas sei que eles hão de vir bater-me à porta e dizer o que preciso ouvir, levar-me aos sítios que preciso ir. Vão cuidar de mim quando tu não estiveres. Aqui entre nós, acho que eles vão ser melhores amigos do que eu tenho sido. Por vezes quero perguntar-lhes como estão, como é essa experiência da viuvez, mas dá-me tanto medo de te perder que desconverso, não quero atrair a morte. Eles lá devem falar entre eles no clube dos viúvos como diz a Elisabete. É estranho para mim vê-los sozinhos, não sei, nos últimos tempos, não me acostumo, fico zangada de agora não os encontrar aos pares. Estás a rir-te? Diz? É, somos um belo par de jarras, tens razão, meu amor. Agora diz-me, como é que vou ser eu a sós? 
 
Tu és o meu melhor amor, a minha melhor amizade, companhia e confidente. O meu relógio de todos os dias. Por falar nisso, já são cincoemeia, distraí-me, que disparate, tenho de ir fazer o lanche, para tomares os comprimidos. Mas meu amor, já perdemos tanto do que era nosso e especial com esta doença – tínhamos tantos planos para os segundos melhores anos da nossa vida – como posso eu perder mais? Com quem divido esta dor sem ser contigo? Como sobrevivo à tua morte sem ti? E depois, tenho medo de não conseguir manter a casa. De não ter forças e/ou dinheiro. Esta casa será o meu santuário, é nela onde te encontrarei sempre. Escuta-me: quem serei eu sem ti, meu amor? Para mim? Para os outros?
 
Acho que quando me morreres vou transformar-me num prédio histórico, ficar só fachada. Vou interditar os acessos por um tempo, precisar de fazer restaurações no edifício de ponta a ponta. Serei a mesma e serei outra.Vou ter que te arrumar dentro de mim, alojar-te bem para que possas comigo ir às viagens da Celeste. Arrumar-te num sítio bonito como arrumei o meu irmão e os meus pais. Num sítio ainda mais bonito! Uma suíte. 
 
Para acabar que tenho mesmo de ir fazer o lanche, noutro dia comprei um livro que se chama “a ridícula ideia de não voltar a ver-te”, tem uma mulher na capa que parece voar e enlouquecer ao mesmo tempo. Quem me falou dele foi o Augusto que agora lê imenso. Comprei-o e guardei-o. Escondi-o da vista, vá. Não quero chamar a morte, mas queria ter um plano para as primeiras noites, aquelas em que não se prega olho, bem sabes. Aquela frase ficou guardada em mim. Repito-ma muitas vezes: a ridícula ideia de não voltar a ver-te. Parece que nasceu para ser dita na minha boca. É mesmo uma ideia ridícula imaginar que um dia nunca mais te vejo. Passarinho, tens de me largar a mão, olha que o lanche e os comprimidos chamam-me. Tenho de ir. Já vou, já me calo, mas só te quero dizer: serás para sempre os melhores anos da minha vida. Pronto, agora vou fazer o lanche, que já devias ter tomado os comprimidos. Olha, meu amor, uma última coisa: ai de ti se me morres enquanto te preparo o lanche. 
 
Nota da psicóloga: enlutar na terceira idade é comum, mas não dói menos por isso. Na verdade, tem potencial para doer mais: na velhice temos menos recursos protectores disponíveis, mais perdas somadas, mais solidão. Perder um companheiro ou uma companheira depois de uma quase vida inteira partilhada é perdermo-nos também. Ficamos muito vulneráveis – emocionalmente e fisicamente. Às vezes, temos a sorte de ter amigos, vizinhos, família que nos cuida e respeita ao exercer esse cuidado, outras vezes não. Por vezes, queremos falar sobre esta experiência, mas não queremos preocupar os nossos ou não temos quem nos escute – só quem nos distraia. Se sentir falta desse espaço e escuta, as consultas de psicologia podem ser esse lugar seguro. Um abraço.