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O que perdemos quando perdemos um ídolo? Do que falamos quando falamos de luto colectivo?
Parecem perguntas de uma só resposta, mas não o são. Nada na psicologia do luto o é.

 

 

Começando pelo fim, o luto colectivo é uma experiência partilhada de perda entre um grupo de pessoas. Por vezes, afectando o sentimento de pertença ao grupo, logo a identidade do grupo. Por exemplo, milhares de refugiados do clima ou da guerra, enlutam colectivamente pelo país que deixaram para trás. Não precisamos questioná-los para adivinhar que em todos o luto pelo seu país de origem está presente. Também é comum escutarmos nos emigrantes portugueses este sentimento de já não ser bem de cá, mas também não ser inteiramente de lá. Falta-lhes o sentimento de pertença ao país – os vizinhos a falar a mesma língua, os costumes partilhados, a comida com memória afectiva, os eventos da família e dos amigos. É que nas pequenas experiências do quotidiano a sua identidade portuguesa não se encontra. Entende-se?

 

Assim, é fácil perceber que enlutámos colectivamente na pandemia, nos incêndios de Pedrógão Grande, na queda da ponte Entre-os-Rios, quiçá nas últimas eleições nacionais. Mas que também podemos enlutar colectivamente quando a câmara decide cortar as árvores centenárias duma avenida da cidade onde vivemos, quando o vocalista da nossa banda preferida morre e a professora da primária que muitos partilhámos fecha os seus olhos para todo o sempre. Enlutamos colectivamente quando a senhora do café da aldeia, cansada das suas pernas, decide fechar o café onde nos reunimos tantos anos a fio, quando o verão termina, quando o Taskmaster finda a temporada, quando é retirado um produto muito estimado da prateleira do Mercadona. Inclusive, enlutamos colectivamente quando perdemos alguém da nossa família. Sim, isso mesmo.

 

 

É que as perdas podem ser de diferentes naturezas, de diferentes grandezas, de diferentes proximidades. E as pessoas tendem a caminhar em grupos. Um grupo será sempre um grupo, seja ele maior ou menor. Os grupos definem-se por pessoas unidas por terem algo em comum – lugares, interesses ou afectos.

 

 

Por isso, há lutos colectivos vividos à escala mundial e lutos colectivos vividos à escala de um grupo de amigos. Não é menos luto colectivo o de uma família quando comparado com o luto vivido por uma comunidade escolar. Tal como, não é menos luto colectivo o da comunidade escolar quando comparado com o luto de uma figura pública reconhecida nacional ou internacionalmente, real ou fictícia. (Quantos de nós já não perdemos um personagem predilecto de uma série e ficámos devastados?)

 

As perdas colectivas não são mais válidas pelo tamanho do grupo ou por quem o grupo leva dentro. Repito: as perdas colectivas não são mais válidas pelo tamanho do grupo ou por quem o grupo leva dentro. Ainda assim, caímos frequentemente no erro de julgar uma perda como maior ou menor pelo reconhecimento que ela tem socialmente e pelo impacto em quem tem.

 

O que nos conduz à pergunta seguinte: o que perdemos quando perdemos um ídolo? Depende, atrevo-me a responder num psicologuês característico. É que os lutos colectivos são o conjunto de muitos lutos individuais, tantos quantas pessoas participarem nesse grupo que partilha a vivência de enlutamento.

 

Tal como dois filhos não perdem o mesmo pai porque este pai tinha uma relação diferente com cada um dos filhos, mas ambos partilham a mesma figura de pai e choram pelo mesmo homem. Também nós não perdemos o mesmo ao perder um ídolo, ainda que o percamos na mesma pessoa, através da mesma pessoa.

 

Sendo clara: o que lhe dói na perda desse ídolo, não será o que me doerá a mim, o que doerá à família, o que doerá aos amigos, aos colegas de profissão, aos outros fãs, sequer aos que nem conheciam a figura pública, mas se impactaram pela notícia da sua morte.

 

O que lhe dói, por vezes, nem diz da relação que tinha com a pessoa que morreu ou da sua relação com o trabalho por ela desenvolvido. Diz antes de si, da sua história, dos medos que já habitavam o seu ser e que a morte dessa pessoa colocou sobre a mesa de jantar: escancarados.

 

 

Então, o que perdemos quando perdemos um ídolo? Depende. Depende dos significados que atribuímos a essa pessoa ou a essa perda.

 

 

Às vezes, perdemos o sentimento de segurança e controlo, perdemos a inconsciência da nossa mortalidade, podemos até perder um modelo em que nos espelhávamos ou inspirávamos. Noutras ocasiões, perdemos a possibilidade de viajar na nossa particular máquina do tempo para épocas felizes da nossa vida e somar-lhes mais alegria. (Não é o que fazemos todos ao assistir aos trinta, aos cinquenta e aos setenta aos concertos das bandas da nossa juventude?)

 

Por vezes, nem perdemos, despertamos. Despertamos o medo da morte dos nossos ou da nossa morte e/ou as nossas histórias de luto passadas. Se me permite o convite, diante de um colectivo, permita-se o silêncio. Separar o que é seu do que é dos outros. Perguntar-se com curiosidade o que esta perda faz ressoar em mim? Espero o eco da sua pergunta. Só aí descobrirá o que significa em si, o que perdeu ou despertou.

 

Será um luto colectivo, sim. Mas escondido no plural, está o seu singular. Não o deixe passar despercebido.