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Um irmão é um presente dos pais, um amuleto contra a solidão. 
 
Pelo menos é isso que os pais juram na infância: no dia em que eles partirem, o irmão ficará. 
 
Os irmãos que se gostam e estimam são uma espécie de duplos prometidos do colo dos pais: uma garantia da continuidade da família nuclear. A pessoa que mais tempo vamos amar na vida. A relação afectiva mais incondicional e duradoura.
 
Quando esse irmão cúmplice morre precocemente, o mundo interno do outro vira de pernas para o ar. 
 
É que se perde muito quando se perde um irmão. 
 
Perde-se o companheiro de uma vida, a gargalhada até faltar o ar, o abraço antissísimico, a rota de fuga ao tédio e à intriga dos eventos familiares, a memória das nossas aventuras de infância, a testemunha mais fiel do que sentimos e vivemos e de como o sentimos e como o vivemos, o nosso modelo da adolescência, a pessoa que partilha as mesmas referências afectivo-culturais, uma espécie de cloud de terabytes ilimitados do nosso particular universo, o nosso mais parcial e fiel aliado em todas as batalhas, a nossa claque mais entusiasta, por vezes até um segundo pai ou um primeiro filho, um amigo protegido e protector. Perde-se em todos os tempos: lá atrás, agora, mais adiante. Passado, presente e futuro. Perde-se o que achava que se teria para sempre: casa. O sentimento de estar em casa, de chegar a casa, de ser casa. 
 
Um irmão sem o outro é uma espécie de filho único sem preparo, lançado às preocupações de como cuidará dos pais na velhice sozinho, ao não costume de não ter com pensar a dinâmica familiar em voz alta e à angústia de se perceber um dia fim de linha da família. 
 
É um filho que tem de abraçar o papel de dois, que crê que tem de preencher uma ausência e sente culpa desse protagonismo que não desejou. Compara a sua dor com a dos pais e diminui-a frequentemente. Desautoriza-se no seu luto e os outros desautorizam-no também. “Cuida dos teus pais, olha o que lhes aconteceu”. 
 
É um filho que enluta duplamente. Perde o irmão, sim, mas perde também os pais que conhecia. Perde muitas vezes espaço e atenção – é negligenciado pela dor. Padece de solidão e desamparo e de uma dor que não adormece. Precisa de colo, reconhecimento e da sua família.
 
Um irmão enlutado é um filho que perde a família que conhecia e esforça-se para reconstruir a casa que todos habitavam. Ocupa-se a pintar as paredes, a forrar cadeiras com novos tecidos e a dar destaque aos bibelôs. Mistura o velho e o novo mundo num exercício de fé e devoção. 
 
Um irmão enlutado transforma-se no melhor herdeiro e guardião do seu irmão: cumprindo-se e cumprindo um pouco do que faltou viver ao outro. Empresta pernas e braços a sonhos que não eram seus, ouvidos e olhos a universos que tomou para si emprestados. Reencontram-se os dois irmãos aí.
 
Se fecharmos os olhos e escutamos um irmão enlutado com atenção, vamos percebê-lo sempre e para sempre um dueto, nunca um artista a solo. Consegues ouvir?