A Ana Vilela canta: “Segura teu filho no colo. Sorri e abraça os teus pais enquanto estão aqui. Que a vida é trem-bala, parceiro. E a gente é só passageiro prestes a partir”. Cada vez que escuto estas palavras, sou tomada por um sobressalto, como se fosse um despertador incessante, exigindo que me levante e recalcule a rota da minha vida.
A morte, na sua paradoxal existência, tem esse condão de nos realinhar, tal como um osteopata, se o permitirmos. Quando ela bate à porta das nossas casas, não vem de mãos vazias. Pelo contrário, traz consigo uma clareza inquietante sobre a vida como uma oferenda, traz verdades que desarmam. A morte força-nos a olhar o mundo desapossados de filtros. Ensina-nos a distinguir, sem rodeios, o que realmente importa do que é trivial; o que é precioso do que é ordinário; o que é profundo do que é raso; o que é passado do que é presente. Intuimos, na sua chegada, que imporá transformações das quais não poderemos escapar.
É como se a morte, uns dias depois da sua aparição, mandasse entregar, nas nossas moradas, uma encomenda contendo diferentes chapéus. Chapéus escolhidos a dedo para nós, com muito cuidado, cada um possibilitando a análise de um ângulo diferente da vida após a perda.
Um chapéu espiritual-existencial lilás, questiona-nos sobre o sentido da vida, os nossos planos, as nossas crenças e o que acreditamos que nos espera após o último suspiro.
Um chapéu, mais sistémico, com um padrão patchwork, desafia os papéis de cada um na família, transforma a nossa relação com os outros e connosco.
Um chapéu de aba larga, mergulha-nos nas regras e rituais de morte e luto da cultura em que vivemos, alterando os contextos sociais que frequentamos e a forma tantas vezes como a sociedade nos etiqueta. Às vezes, faz muita sombra.
Um chapéu taralhouco, com o forro do lado de fora, meio do avesso, desperta em nós emoções cruas, sentires agudos, suscita alterações no nosso estilo de vida e faz-nos ser, um tanto ou quanto, desorientados, nas tarefas do quotidiano.
Um chapéu que escorre alegando Salvador Dalí, chama-nos à reflexão sobre o tempo e o ritmo da nossa vida. Com ele colocado, cada hora ganha um peso a mais. Tomamos consciência que não somos eternos, e essa consciência é ao mesmo tempo, avassaladora e libertadora.
Um chapéu perfumado, que nos evoca memórias. Envolve-nos numa nostalgia que tanto aquece quanto aperta o coração. Com ele posto revisitamos instantes, cheiros, sabores e legados.
Por fim, um chapéu branco, tecido com fios de esperança, que nos oferece a possibilidade de ressignificação. Permite-nos reencontrar sentido no caos, inspira-nos a reconstruir o que foi desfeito e a criar narrativas a partir do que foi perdido. Este chapéu não nega a dor, mas a transforma-a numa bússola.
Trocamos frequentemente de chapéu nas nossas cabeças. E enquanto os usamos aprendemos a dançar com o tempo slows, a encontrar no efémero o eterno e a abraçar a incerteza do futuro com a mesma entrega com que abraçamos a certeza do presente.
Ana Vilela sábia também o canta “não é sobre correr contra o tempo pra ter sempre mais porque quando menos se espera a vida já ficou pra trás”. E esclarece ainda “não é sobre chegar no topo do mundo e saber que venceu. É sobre escalar e sentir que o caminho te fortaleceu”.
Nunca esqueçam: o caminho, faz-se caminhando; o luto, faz-se enlutando. Boa escalada!